quarta-feira, 1 de maio de 2024

LAST LETTER / A ÚLTIMA CARTA, de Ted Hughes (*)

 




What happened that night? Your final night.

Double, treble exposure

Over everything. Late afternoon. Friday.

My last sight of you alive.

Burning your letter to me, in the ashtray,

With that strange smile. Had I bungled your plan?

Had it surprised me sooner than you purposed?

Had I rushed it back to you too promptly?

One hour later – you would have been gone

Where I could not have traced you.

I would have turned from your locked red door

That nobody would open

Still holding your letter,

A thunderbolt that could not earth itself.

That would have been electric shock treatment

For me.

Repeated over and over, all weekend,

As often as I read it, or thought of it.

That would have remade my brains, and my life.

The treatment that you planned needed some time.

I cannot imagine

How I would have got through that weekend.

I cannot imagine. Had you plotted it all?

Your note reached me too soon – that same day,

Friday afternoon, posted in the morning.

The prevalent devils expedited it.

That was one more straw of ill-luck

Drawn against you by the Post-Office

And added to your load. I moved fast,

Through the snow-blue, February, London twilight.

Wept with relief when you opened the door.

A huddle of riddles in solution. Precocious tears

That failed to interpret to me, failed to divulge

Their real import. But what did you say

Over the smoking shards of that letter

So carefully annihilated, so calmly,

That let me release you, and leave you

To blow its ashes off your plan – off the ashtray

Against which you would lean for me to read

The Doctor’s phone-number.

My escape

Had become such a hunted thing

Sleepless, hopeless, all its dreams exhausted,

Only waiting to be recaptured, only

Wanting to drop, out of its vacuum.

Two days of dangling nothing. Two days gratis.

Two days in no calendar, but stolen

From no world,

Beyond actuality, feeling, or name.

My love-life grabbed it. My numbed love-life

With its two mad needles,

Embroidering their rose, piercing and tugging

At their tapestry, their bloody tattoo

Somewhere behind my navel,

Treading that morass of emblazon,

Two mad needles, criss-crossing their stitches,

Selecting among my nerves

For their colours, refashioning me

Inside my own skin, each refashioning the other

With their self-caricatures,

Their obsessed in and out. Two women

Each with her needle.

That night

My dellarobbia Susan. I moved

With the circumspection

Of a flame in a fuse. My whole fury

Was an abandoned effort to blow up

The old globe where shadows bent over

My telltale track of ashes. I raced

From and from, face backwards, a film reversed,

Towards what? We went to Rugby St

Where you and I began.

Why did we go there? Of all places

Why did we got there? Perversity

In the artistry of our fate

Adjusted its refinements for you, for me

And for Susan. Solitaire

Played by the Minotaur of that maze

Even included Helen, in the ground-floor flat.

You had noted her – a girl for a story.

You never met her. Few ever met her,

Except across the ears and raving mask

Of her Alsatian. You had not even glimpsed her.

You had only recoiled

When her demented animal crashed its weight

Against her door, as we slipped through the hallway;

And heard it chocking on infinite German hatred.

That Sunday night she eased her door open

Its few permitted inches.

Susan greeted the black eyes, the unhappy

Overweight, lovely face, that peeped out

Across the little chain. The door closed.

We heard her consoling her jailor

Inside her cell, its kennel, where, days later,

She gassed her ferocious kupo, and herself.

Susan and I spent that night

In our wedding bed. I had not seen it

Since we lay there on our wedding day.

I did not take her back to my own bed.

It had occurred to me, your weekend over,

You might appear – a surprise visitation.

Did you appear, to tap at my dark window?

So I stayed with Susan, hiding from you,

In our own wedding bed – the same from which

Within three years she would be taken to die

In that same hospital where, within twelve hours,

I would find you dead.

Monday morning

I drove her to work, in the City,

Then parked my van North of Euston Road

And returned to where my telephone waited.

What happened that night, inside your hours,

Is as unknown as if it never happened.

What accumulation of your whole life,

Like effort unconscious, like birth

Pushing through the membrance of each slow second

Into the next, happened

Only as if it could not happen,

As if it was not happening. How often

Did the phone ring there in my empty room,

You hearing the ring in your receiver –

At both ends the fading memory

Of a telephone ringing, in a brain

As if already dead. I count

How often you walked to the phone-booth

At the bottom of St George’s terrace.

You are there whenever I look, just turning

Out of Fitzroy Road, crossing over

Between the heaped up banks of dirty sugar.

In your long black coat,

With your plait coiled up at the back of your hair

You walk unable to move, or wake, and are

Already nobody walking

Walking by the railings under Primrose Hill

Towards the phone booth that can never be reached.

Before midnight. After midnight. Again.

Again. Again. And, near dawn, again.

At what position of the hands on my watch-face

Did your last attempt,

Already deeply past

My being able to hear it, shake the pillow

Of that empty bed? A last time

Lightly touch at my books, and my papers?

By the time I got there my phone was asleep.

The pillow innocent. My room slept,

Already filled with the snowlit morning light.

I lit my fire. I had got out my papers.

And I had started to write when the telephone

Jerked away, in a jabbering alarm,

Remembering everything. It recovered in my hand.

Then a voice like a selected weapon

Or a measured injection,

Coolly delivered its four words

Deep into my ear: ‘Your wife is dead.’



Tradução e notas de Marcus Salgado:



O que aconteceu naquela noite? Tua última noite.

Dupla, tripla exposição [1]

De tudo. Viva eu te vi pela última vez

No cair da tarde de sexta-feira

A queimar no cinzeiro com um estranho sorriso

A carta a mim endereçada. Atrapalhei teus planos?

A surpresa chegou antes do previsto?

Minha resposta foi rápida demais?

Uma hora mais tarde e terias rumado

Para onde eu não te pudesse encontrar

E eu teria me afastado de tua porta fechada e vermelha

A que ninguém abriria

Com tua carta na mão,

Um raio que não conseguiu chegar à terra.

Isso para mim teria sido um tratamento de choque

Que se repetiria durante todo o final de semana

Quando eu a lesse ou nela simplesmente pensasse.

Isso teria reordenado meu pensamento e minha vida

O tratamento que planejavas necessitava de tempo

Não posso imaginar como

Teria suportado aquele fim de semana.

Não posso imaginar. Tinhas já tudo planejado?

Tua mensagem chegou bem depressa até mim – no mesmo dia,

Sexta à tarde, postada pela manhã.

Expediram-na os demônios que sempre prevalecem

Esse foi mais um dos lances de má sorte

Que contra ti cometeu o correio

E que se acrescentou a teu fardo. Saí rapidamente pela neve

Já azulada em fevereiro. Anoitecia em Londres.

Chorei de alívio quando abriste a porta.

Confusão de enigmas em solução. Lágrimas precoces

Que não pude interpretar, que fracassaram ao comunicar

Sua verdadeira importância. Porém, o que disseste

Sobre as cinzas ainda fumegantes dessa carta

Destruída com tanto cuidado, com tanta calma,

Permitiu que eu partisse, que eu te deixasse

Para soprares as cinzas de teu plano, do cinzeiro

Sobre o qual te debruçarias para que eu lesse

O número de telefone do médico.

Minha fuga

Converteu-se em assombração

Desesperançado e insone, com todos os sonhos exauridos.

E eu só queria tornar a capturá-los, só queria

Cair em algum lugar fora desse vazio.

Dois dias sem fazer nada. Dois dias grátis.

Dois dias fora de qualquer calendário, mas roubados

Do mundo

Para além da realidade, dos sentimentos e dos nomes.

Minha vida amorosa tomou posse. Minha entorpecida vida amorosa

Com suas duas agulhas loucas,[2]

Tecendo sua rosa, perfurando e puxando com força

Na tapeçaria sua tatuagem sangrenta

Em algum lugar dentro de mim, atrás de meu umbigo,

Traçando esse brasão confuso,

Duas agulhas loucas cruzando os pontos,

Escolhendo entre meus nervos

Em função de suas cores, a me remodelar

Por dentro de minha pele, uma refazendo a outra

Como uma autocaricatura,

Seu obsessivo entrar e sair. Duas mulheres

Cada uma com uma agulha.

Naquela noite

Minha Susan dellarobbia.[3] Movimentei-me

Com a circunspecção

De uma chama num pavio. Toda minha fúria

Era um esforço abandonado para explodir

O velho globo sobre o qual as sombras dobram

Meu rastro denunciador de cinzas. Corri

De um lado a outro, olhando para trás, um filme invertido,

Rumo ao quê? Fomos até Rugby Street

Onde tu e eu começamos.[4]

Por que fomos lá? Com tantos lugares

Por que fomos lá? A perversidade

Na arte de nosso destino

Ajustou seus refinamentos para ti, para mim,

Para Susan. Jogo solitário

A que se entregava o Minotauro daquele labirinto [5]

Incluindo até mesmo Helen, no apartamento térreo.

Reparaste nela: personagem para um conto.

Não a conheceste. Poucos a conheceram

A não ser através dos ouvidos e da máscara delirante

De seu cão pastor-alemão. Tu nem mesmo a viste de relance.

Apenas te encolheste

Quando o cão demente lançou seu peso

Contra a porta enquanto deslizávamos pelo corredor

E o ouvíamos a engasgar em seu infinito ódio alemão.

Naquela noite de domingo ela deixou a porta aberta

Uns poucos centímetros

Susan saudou aqueles olhos negros, o infeliz

Sobrepeso e o rosto cativante que apareceram

Por trás da corrente do trinco. A porta se fechou.

Ouvimo-la a consolar o carcereiro

Dentro de sua cela, o canil, onde, dias depois,

Ela sufocou com gás a feroz criatura e a si mesma.

Eu e Susan passamos aquela noite

Em nosso leito nupcial. Não havia visto esta cama

Desde que nela nos deitamos em nossa primeira noite.

Não a levei de volta para minha cama.

Ocorrera-me que, com o final de semana,

Poderias aparecer, uma visita surpresa.

Apareceste, para tamborilar em minha sombria janela?

Permaneci com Susan, escondendo-me de ti,

Em nosso leito nupcial – o mesmo de que

Três anos depois a levariam para morrer

Naquele mesmo hospital onde, dentro de doze horas,

Eu te encontraria morta.

Na manhã de segunda

Levei-a ao trabalho, no centro,

E então estacionei meu veículo ao norte de Euston Road

E retornei para onde o telefone me esperava.

O que aconteceu naquela noite, em tuas horas,

Ninguém o sabe, é como se nunca tivesse acontecido.

A cumulação de toda tua vida,

Como um esforço inconsciente, como um nascimento

A fazer avançar a membrana de cada lento instante

Para o interior do seguinte, ocorreu

Como se não pudesse ocorrer

Como se não estivesse ocorrendo. Quantas vezes

Tocou o telefone em meu quarto vazio,

Tu a ouvir o toque no aparelho –

E de um lado e de outro da linha a memória

De um toque de telefone a se desvanecer

Na mente, como se já morta. Conto as vezes

Que possas ter caminhado até a cabine telefônica

No final de Saint George’s Terrace.[6]

Ali estás sempre que olho, saindo

De Fitzroy Road,[7] atravessando

Por entre as margens abarrotadas de açúcar sujo.

Em teu longo sobretudo negro

Tua trança enrolada na parte de trás do cabelo

Andas mas não consegues mover-te, ou acordar,

E já ninguém mais anda,

Andando pela balaustrada sob Primrose Hill [8]

Rumo à cabine telefônica nunca alcançada.

Antes da meia-noite. Depois da meia-noite. Novamente.

Novamente. Novamente. E, às raias da alvorada, novamente.

Em que posição dos ponteiros do relógio

Foi que fizeste tua última tentativa

Já bem além de minha capacidade de escutá-la, que sacudiste

O travesseiro daquela cama vazia? Uma última vez

Tocaste suavemente em meus livros e em meus papéis?

Quando cheguei o telefone dormia.

O travesseiro inocente. Meu quarto dormia,

Cheio da nívea luz matinal.

Acendi o fogo. Saquei meus papéis.

Mal tinha começado a escrever quando o telefone

Estremeceu, num alarme tagarela,

Recordando tudo. Em minha mão ele se recuperou.

E depois uma voz que soava como uma arma escolhida

Ou uma injeção medida

Friamente pronunciou as quatro palavras

No fundo de meu ouvido: “Sua esposa está morta”.

NOTA:


(*) Inédito até 2010 (quando foi resgatado do acervo da British Library e preparado para publicação no periódico New Statesman), “A última carta” se dispõe a lidar diretamente com o suicídio de Plath. O poema evoca o derradeiro encontro entre Ted e Sylvia, ocorrido poucos dias antes da morte da poeta. De acordo com a versão nele apresentada, Sylvia teria escrito um bilhete endereçado a Ted, com possível alusão ao suicídio. Postada na manhã de sexta, a correspondência deveria ter chegado às mãos do destinatário após sua morte, mas, por obra do eficiente serviço postal inglês, acabou por ser entregue no mesmo dia. A crer na narrativa do poema, Ted teria se dirigido à casa de Sylvia, onde ela queimou o bilhete, “com um estranho sorriso”. A publicação de “A última carta” gerou grande polêmica, tanto no que diz respeito à versão dos fatos apresentada por Ted Hughes, como no que se refere à edição póstuma de textos incompletos pertencentes ao espólio de um escritor. Quer se considere verídica ou fantasiosa a narrativa de Hughes, “A última carta” é um poema que, embora incompleto, contém inegáveis qualidades imagísticas e emocionais.



NOTAS DO TRADUTOR:



[1] Na linguagem fotográfica chama-se dupla ou tripla exposição quando a película é exposta, mais de uma vez, a imagens diferentes, que se sobrepõem. Trata-se de efeito artístico que gera uma aura fantasmagórica na fotografia.

[2] É possível pensar que na imagem das duas mulheres com suas agulhas loucas se encontra uma alusão ao comportamento emocionalmente instável de Sylvia Plath e Assia Wevill.

[3] Seria a poeta Susan Alliston, segundo Melvyn Bragg, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto e pela publicação do poema. O verso contém, ainda, uma possível menção à família de escultores florentinos della Robbia (Luca, Andrea e Giovanni), famosos pela graça, pela perfeição e pela sedução de suas figuras.

[4] Em março de 1956, na véspera de viajar para Paris, Sylvia Plath visitou Ted Hughes, que então residia no número 18 da Rugby Street – conforme se lê no poema “18 Rugby Street”, incluído em Birthday letters, livro de poemas publicado poucos meses antes da morte do poeta.

[5] A imagem da casa de Rugby Street como um labirinto também está presente no poema “18 Rugby Street”. Em certo momento, lê-se: “É mal-assombrada!/Quem entra nunca sai completamente!/Quem entra penetra um labirinto”.

[6] Próximo à Primrose Hill Road, portanto dentro do perímetro evocado pela geografia sentimental do poema.

[7] Sylvia Plath se matou na casa número 23 desta rua londrina. O endereço tem uma tradição literária, pois, antes de Sylvia, nele residiu o poeta W. B. Yeats.

[8] Nesta região de Londres situava-se um dos endereços de Sylvia e Ted quando casados: 3 Chalcot Square. Posteriormente, já separados, Sylvia voltou a habitar nas cercanias, em Fitzroy Road.



(Academia Brasileira de Letras, Revista Brasileira nº 69, ano XVIII, outubro-dezembro, 2011. P. 278-291.)



(Ilustração: Sylvia Plath - autorretrato, c.1946-1952)

domingo, 28 de abril de 2024

COMEMORAR O MEDO, de Mia Couto

 




O medo foi um dos meus primeiros mestres.

Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinaram a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão.

Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem:

Para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.

Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:

Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?

Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar?

Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?

Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se fome!

Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome.

O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres.

A nossa indignação porém é bem menor que o medo!

Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.

Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

Muito obrigado



(Transcrição da intervenção de Mia Couto na Conferências do Estoril, 2011)



(Ilustração: Francisco de Goya – colossos)

sexta-feira, 26 de abril de 2024

REZEPT / RECEITA, de Mascha Kaléko

 



Jage die Ängste fort

Und die Angst vor den Ängsten.

Für die paar Jahre

Wird wohl alles noch reichen.

Das Brot im Kasten

Und der Anzug im Schrank.



Sage nicht mein.

Es ist dir alles geliehen.

Lebe auf Zeit und sieh,

Wie wenig du brauchst.

Richte dich ein.

Und halte den Koffer bereit.



Es ist wahr, was sie sagen:

Was kommen muß, kommt.

Geh dem Leid nicht entgegen.

Und ist es da,

Sieh ihm still ins Gesicht.

Es ist vergänglich wie Glück.



Erwarte nichts.

Und hüte besorgt dein Geheimnis.

Auch der Bruder verrät,

Geht es um dich oder ihn.

Den eignen Schatten nimm

Zum Weggefährten.



Feg deine Stube wohl.

Und tausche den Gruß mit dem Nachbarn.

Flicke heiter den Zaun

Und auch die Glocke am Tor.

Die Wunde in dir halte wach

Unter dem Dach im Einstweilen.



Zerreiß deine Pläne. Sei klug

Und halte dich an Wunder.

Sie sind lang schon verzeichnet

Im grossen Plan.

Jage die Ängste fort

Und die Angst vor den Ängsten.



Tradução de Valeska Brinkmann:



Expulsa os medos

E o medo dos medos

Para os poucos anos

Há de ser o suficiente.

O pão no cesto

E o terno no armário.



Não diga meu.

Tudo te é emprestado.

Vive o momento e vê,

Quão pouco precisas.

Instala-te.

E deixa a mala preparada.



É verdade o que falam:

O que é pra vir, vem.

Não te oponhas ao sofrimento

Se ele está lá,

Encara-o em silêncio.

Ele é efêmero tal qual a felicidade.



Não esperes nada.

E protege bem teu segredo.

Também o irmão trai,

Trata-se de ti ou dele.

Toma tua própria sombra

Como tua companheira.



Varre bem tua sala.

E saúda teus vizinhos.

Ajeita tua cerca

E também o sino no portão.

A ferida em ti está desperta

Debaixo do telhado, por enquanto.



Rasga teus planos. Sê astuto

E te agarra nas maravilhas

Elas já foram há tempos lançadas

No grande plano.

Expulsa os medos

E o medo dos medos.



(In meinen Träumen läutet es Sturm, dtv, 1977)



(Ilustração : Arnold Böcklin,1827-1901) 

terça-feira, 23 de abril de 2024

NUNCA ENTENDI POR QUE JOSETE QUANDO CITAVA POUND COLOCAVA A ENTONAÇÃO INGLESA, de Hilda Hilst

  


O que eu podia fazer com as mulheres além de foder? Quando eram cultas, simplesmente me enojavam. Não sei se alguns de vocês já foderam com mulher culta ou coisa que o valha. Olhares misteriosos, pequenas citações a cada instante, afagos desprezíveis de mãozinhas sabidas, intempestivos discursos sobre a transitoriedade dos prazeres, mas como adoram o dinheiro as cadelonas! Uma delas, trintona, Flora, advogada que tinha um rabo brancão e a pele lisa igual à baga de jaca, citava Lucrécio enquanto me afagava os culhões e encostava nas bochechas translúcidas a minha caceta: ó Crasso (até aí o texto é dela) e depois Lucrécio: "o homem que vê claro lança de si os negócios e procura antes de tudo compreender a natureza das coisas". A natureza da própria pomba ela compreendia muito bem. Queria umas três vezes por noite o meu pau rombudo lá dentro. E antes desse meu esforço queria também a minha pobre língua se adentrando frenética naquela caverna vermelhona e úmida. Empapava os lençóis. Era preciso enxugá-la com uma bela toalha felpuda antes de meter na dita cuja. Na hora do gozo ria.

isso não é normal Flora.

bobinho! Isso é vida, alegria, o amor é alegre, Crassinho.

Histérica e sabichona dava gritinhos e rápidos aulidos, e quando tudo acabava, sentava-se sóbria na beirada da cama:

as causas judiciais demoram tanto para serem solucionadas, meu Crasso, tem algum numerário aí para mim? assim que receber dos meus clientes te pago. O seu único cliente era eu e claro que eu pagava. Afinal não me fazia mal ouvir Lucrécio de vez em quando, se a atriz discursante era dona daquela pomba molhada e faminta. Claro que nem todas as soi-disant cultas são assim tão chatas. Tive as cultas refinadas e originais também. Mas que mão de obra, meu pai! Uma delas é inesquecível. Josete. Inesquecível por vários motivos. Mas principalmente pelo gosto exótico na comida e no sexo. Ela adorava tordos com aspargos. E pastelões de ostras. Era preciso que eu telefonasse uma semana antes para os maîtres dos tais restaurantes. Tordo?! Nunca sabiam se era um pássaro ou um peixe. Eu imagino hoje que ela sempre acabava comendo um sabiá. Com aspargos. O pastelão de ostras era mais fácil. Mas os vinhos para acompanhar aquilo tudo! Josete entendia de vinhos como se tivesse nascido embaixo duma parreira de Avignon. Depois desse inferno todo, ainda tínhamos que dançar, porque é delicioso dançar com você amor, se você tivesse mais tempo...

tenho todo o tempo do mundo, querida (talvez tivesse, mas nem tanto!)

Tinha mania de uma música: You've changed, e era aquela xaropada até às duas da manhã mais ou menos, quando eu já havia mergulhado meus dedos várias vezes na sua suculenta xereca. Abria discreta e elegante as pernas nas boates, embaixo da mesa, enquanto engolia com avidez aqueles vinhos caríssimos. Sorrindo soltava um pífio arroto de tordos e ostras abafado entre os seus dois dedinhos, enquanto os meus (dedos naturalmente) beliscavam-lhe a cona. Muitas beliscadinhas, muito dedilhado até que ela gozava escondendo o gozo e simulando um segredo e enchendo de bafo, gemidos e saliva a concha do meu ouvido. Eu dizia com a caceta dura e espremida entre as calças:

vamos embora, hen bem?

tá tão gostoso, amor

eu sei, Josete, mas olha só o meu pau

não seja grosso, Crasso

E aí eu tinha que começar tudo de novo, não sem primeiro ouvi-la pedir as sobremesas e os licores. Depois de Josete ter gozado umas dez vezes entre sabiás e musses e álcoois dos mais finos que me custavam um caralhão de dinheiro, levantava-se garbosa, Espártaco antes da derrocada final, naturalmente. Eu ia atrás meio cego mas ainda sedento. Um tal de Ezra Pound, poeta norte-americano, era o xodó de Josete. Ô cara repelente. Um engodo. Invenção de letrados pedantescos. No primeiro dia que ela citou o tal poeta eu lhe disse: meu tio Vlad quando eu era molequinho, tinha crises de loucura quando ouvia esse aí falando numa rádio italiana. O cara era um bom fascistóide, você sabia?

bobagens, Crassinho, o homem foi um gênio.

Para agradá-la, pedi que me emprestasse algum livro dele. Emprestou Do Caos à Ordem, cantar XV. Aquilo era uma pústula, uma privada de estação em Cururu Mirim. Senão, vejam:



"O eminente escabroso olho do cu cagando

[moscas,

retumbando com imperialismo

urinol último, estrumeira, charco de mijo sem

[cloaca

................. o preservativo cheio de baratas,

tatuagens em volta do ânus

e em círculo de damas jogadoras de golfe em

[roda dele."

Josete adorava. Os olhinhos cor de alcaçuz, úmidos, tremelicavam. A boca repetia lentamente (em inglês, lógico) esses últimos dois versos do tal gênio: "tattoo marks around the anus, and a circle of lady golfers about him". Eu achava um lixo, mas não queria me desentender com toda aquela boceta-chupeta que literalmente, quando ativada, abraçava e quase engolia o meu pau.

tudo bem, Josete, se você gosta... de gustibus et coloribus etc.

pois gosto tanto, amor, que vou te mostrar a que ponto vai minha reverência por esse autor admirável

Abatido, já me imaginei desperdiçando aquelas horas a folhear idiotias, ainda mais em inglês. Estávamos no apartamento de Josete. Pensei: é agora que ela vai se levantar e esparramar os livros do nojento aqui na cama. E adeus mesmo, vou inventar uma súbita náusea e me mando. Surprise! Ah, como a vida me encheu de surpresas! Josete deitou-se de bruços e ordenou lacônica:

pegue aquela grande lupa lá na minha mesinha.

Lupa?

Lupa, sim, Crassinho.

Então peguei.

faz um favor, benzinho, abra o meu cu.

como?

oh, Crassinho, como você está ralenti esta noite

e o que eu faço com a lupa?

a lupa é pra você olhar ao redor dele.

ao redor do seu cu, Josete?

evidente, Crassinho.

Foi espantoso. Ao redor do buraco de Josete, tatuadas com infinito esmero e extrema competência estavam três damas com seus lindos vestidos de babados. Uma delas tinha na cabeça um fino chapéu de florzinhas e rendas.

não acredito no que estou vendo, Josete, você tatuou à volta do seu cu pra quê?

homenagem a Pound, Crassinho

mas isso deve ter doído um bocado!

the courageous violent slashing themselves with knifes (que quer dizer: os violentos corajosos cortando-se com facas. Continuação do Canto XV).

coma meu cuzinho, coma meu bem, andiamo, andiamo (cacoetes de Pound)

Aí achei o cúmulo. "Jamais, meu amor, machucaria essas lindas damas". Josete começou a chorar.

ó Crasso, você é o primeiro homem a quem eu mostro esse mimo, essa delicadeza, essa terna homenagem ao meu poeta, andiamo, andiamo in the great scabrous arse-hole (no grande escabroso olho do cu)

Aí pensei: essa maldita louca vai começar a choramingar mais alto e o prédio inteiro vai ouvir. Enchi-me de coragem e estraçalhei-lhe o rabo com inglesas ou americanas (who knows?) e babados e o chapéu, não naturalmente sem antes lhe tapar a boca, porque tinha certeza que ela ia zurrar como um asno. Zurrou abafada, mas eu podia discernir algumas palavras. Ela zurrava: ó (leia-se aou, aou, aou, entonação inglesa) Aou Ezra, aou my beloved Ezra! Nunca entendi por que Josete quando citava Pound colocava a entonação inglesa. Também nunca perguntei. Certamente o nojento era o Shakespeare dela.

(...)



(Contos D'Escárnio/Textos Grotescos)



(Ilustração: Mihály von Zichy)

sexta-feira, 19 de abril de 2024

UM ÍNDIO, de Caetano Veloso

 




Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante

E pousará no coração do Hemisfério Sul, na América, num claro instante

Depois de exterminada a última nação indígena

E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida

Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá

Impávido que nem Muhammad Ali

Virá que eu vi

Apaixonadamente como Peri

Virá que eu vi

Tranquilo e infalível como Bruce Lee

Virá que eu vi

O axé do afoxé Filhos de Gandhi

Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor

Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico

Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico

Do objeto-sim resplandecente descerá o índio

E as coisas que eu sei que ele dirá, fará

Não sei dizer assim de um modo explícito

Virá

Impávido que nem Muhammad Ali

Virá que eu vi

Apaixonadamente como Peri

Virá que eu vi

Tranquilo e infalível como Bruce Lee

Virá que eu vi

O axé do afoxé Filhos de Gandhi

Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio



(Ilustração: arte indígena – cocar; autoria não identificada)

terça-feira, 16 de abril de 2024

AI! QUE PREGUIÇA..., de Maria Augusta Fonseca

 




"Ai! que preguiça...", desabafo-chave que percorre a rapsódia de Mário de Andrade, Macunaíma o herói sem nenhum caráter (1928), sugere na sua aparência marcas de uma certa indolência nativa associada também ao prazer carnal, tendo alcance limitado. Seria assim uma expressão que à primeira vista se encerraria em si mesma. Entretanto, há razões para conjecturar que, ao cunhá-la, Mário de Andrade teve motivações mais complexas, ligadas a seu interesse pelas manifestações do caráter nacional enraizadas na língua. Preocupado em se aproximar de um padrão linguístico que expressasse a identidade cultural brasileira, o escritor pode muito bem ter-se atraído pelo recurso sonoro e avançado em muitas direções nessa expressão que forjou e emprestou para desafogo do herói Macunaíma no percurso da rapsódia.

Essa complexidade subjacente que a expressão acolhe tem um rastro na obra do Padre Anchieta, leitura conhecida de Mário de Andrade. Na carta em que faz "a descrição das inúmeras coisas naturais, que se encontram na província de S. Vicente hoje S. Paulo", em fins de maio de 1560, Anchieta observa: "Há outro animal (que os índios chamam Aig, e nós 'Preguiça' por causa de sua morosidade realmente vagarosa [...]".

Além da interjeição "ai", o desabafo abriga elementos sonoros que, sem dúvida, fazem reavivar a explicação de Anchieta: Aig ... Preguiça.

Dicionários etimológicos, de zoologia e não especializados trazem diversas grafias transliteradas do tupi como sendo equivalentes ao substantivo "preguiça": ai, aí, ahú, aig, aígue. O filólogo Antenor Nascentes registra que esse vocábulo tem origem onomatopaica, traduzindo o som emitido pelo animal que "articula um a fechado, muito prolongado, seguido de i curto e aspirado". A Mário de Andrade, poeta, professor de música, crítico, e pesquisador interessado em zoofonia não devem ter escapado as possibilidades de exploração desse amálgama entre o tupi e o português, abrindo espaço para especular que o refrão não se resume a uma simples interjeição individual, mas pretende reforçar, na mestiçagem linguística e na sonoridade musical, mais um traço expressivo da mescla da nacionalidade.

Em Macunaíma, na expressão elaborada de forma poética ecoaria, portanto, o som emitido pelo bicho preguiça, animal emblemático, totêmico, paradisíaco, no entender de Mário de Andrade. De um lado o ai (aig) emaranhando-se nas raízes primitivas de Pindorama e irmanando-se ao ócio criador (sublimado nas artes). Esse ócio tão bem diferenciado por Mário de Andrade em seu artigo de 1918, "A Divina Preguiça", difere daquele sentido de preguiça que traduz a indolência e marca o improdutivo, o inoperante: "Forçoso é continuar, para que o idealismo floresça e as ilusões fecundem, a castigar os que se aviltam no 'far niente;' burguês e vicioso e a exalçar os que compreenderam e sublimaram as artes, no convívio da divina Preguiça!"

E é nessa trilha do ócio-criador, propício ao florescimento da poesia, que Mário de Andrade evoca também, nesse mesmo artigo de 1918, o poema ELDORADO, de Edgar Allan Poe, como exemplo de resquício da preguiça divinizada.

Vale lembrar, ainda, que as preguiças aparecem no roteiro de seu livro de viagem, O turista aprendiz (1927), no papel de antepassados dos imaginários índios Do-Mi-Sol, que teriam como peculiaridade comunicar-se por meio da música. E o "turista" Mário de Andrade expande a explicação: "Também poderia por junto da tribo Do-Mi-Sol, outra tribo inferior, escrava dos Do-Mi-Sol, justamente porque falava com palavras como nós, e daí um, estreitamente de conceitos que a tornava muito inferior. Mas por intermédio desta tribo, poderei criar todo um vocabulário de pura fantasia, mas com palavras muito mais sonoras e de alguma forma descritivamente expressivas onomatopaicamente expressivas, dos meus sentidos".

Nessa trilha, não se pode esquecer também que, ao se despedir da cidade de São Paulo, Macunaíma a transforma em pedra, na imagem do bicho preguiça, como que totemizando-a: "- Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são... Enxugou a lágrima, consertou o beicinho tremendo. Então fez um caborge: sacudiu os braços no ar e virou a taba gigante num bicho preguiça todinho de pedra. Partiram."

O feitiço de Macunaíma resguardará no bicho-estátua sua tradição cultural, trazendo uma vez mais presente aquela "Lenda do aparecimento do homem" contada pelos índios Do-Mi-Sol. O "ai! Que preguiça..." embute, portanto, o desejo ancestral, o princípio de prazer e o de realidade, em níveis distintos, além de sugerir, entrançados na musicalidade da língua e na expressão feita, seu hibridismo e, metaforicamente, uma fratura, a consciência cindida, o traço de divisão de nossa identidade cultural.



(Este artigo foi extraído, com alterações feitos pela própria autora, do ensaio “A carta prás camiabas”, em “Mário de Andrade, Macunaíma o herói sem nenhum caráter”; edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez)



(Ilustração : Pieter Bruegel - The Elder: Laziness)

sábado, 13 de abril de 2024

FANTAISIE / FANTASIA, de Gérard de Nerval

 




Il est un air pour qui je donnerais

Tout Rossini, tout Mozart et tout Weber,

Un air très vieux, languissant et funèbre,

Qui pour moi seul a des charmes secrets.



Or, chaque fois que je viens à l’entendre,

De deux cents ans mon âme rajeunit:

C’est sous Louis treize; et je crois voir s’étendre

Un coteau vert, que le couchant jaunit,



Puis un château de brique à coins de pierre,

Aux vitraux teints de rougeâtres couleurs,

Ceint de grands parcs, avec une rivière

Baignant ses pieds, qui coule entre des fleurs;



Puis une dame, à sa haute fenêtre,

Blonde aux yeux noirs, en ses habits anciens,

Que, dans une autre existence peut-être,

J’ai déjà vue… – et dont je me souviens!



Tradução de Victor Queiroz:




Existe uma ária por que eu trocaria

Qualquer Weber ou Mozart ou Rossini;

Ária funérea e langorosa e antiga,

Cujo secreto encanto é só pra mim.



Ora: sempre que chega-me aos ouvidos,

Transporta-me a alma a séculos atrás:

O rei é Luís XIII… uma colina

Verde – o ocaso a dourava – se desfaz;



E, a seguir, todo um castelo imbricado,

Com seus vitrais tingidos de rubores,

Vastos jardins a cercá-lo, e um riacho

Aos seus pés, a correr por entre as flores;



E, por fim, à janela, uma donzela

Loura, olhos negros, em vestes d’outrora…

Que, doutra vida, pode ser aquela –

Déjà vue! – que inda mora na memória!



(Odelettes rythmiques et lyriques)



(Ilustração: Daniel Muczynski - chateau fort)

quarta-feira, 10 de abril de 2024

A CIVILIDADE PUERIL: OS BANQUETES E AS REFEIÇÕES, de Erasmos de Rotterdam

 



ANTES DAS REFEIÇÕES

Nunca se assentar sem antes lavar as mãos, porém, limpa, primeiro, as unhas.

Que elas não escondam sujeiras senão podes levar o apelido de “unhas encardidas”.

Antes ainda cuida de urinar, à parte; e, se necessário, esvazia o intestino.

Se te incomoda o cinto apertado, trata de folgar a fivela. Fazer isso, já assentado, não cai bem.

Ao enxugar as mãos, afasta todo tipo de pensamento melancólico de tua mente. Durante a refeição, não deves aparentar tristeza como não entristecer a ninguém.

A ORAÇÃO ANTES DO REPASTO

Se pedirem a ti para abençoar a comida, assume uma atitude de acolhimento total, seja com as mãos, seja com a fisionomia. De frente para a pessoa de maior respeito, ali, presente ou voltado para a imagem do Cristo, se houver. Chegado ao nome de Jesus e de sua mãe, a Virgem Maria, faze flexão com os dois joelhos.

Caso seja tal função confiada a outrem, ouve e responde com a mesma devoção.

LUGAR DE HONRA



De bom grado, cede para algum outro o lugar de honra. Se fores convidado para ocupar um espaço de mais destaque, escusa-te com amabilidade. Se há firme insistência e repetida por várias vezes, sendo que quem roga é uma autoridade, cede com simplicidade. Deixar de anuir já não seria cortesia e, sim, obstinação.

POSIÇÃO DAS MÃOS

Uma vez assentado, pousa as duas mãos sobre a mesa, mas não juntas nem sobre o prato. Igualmente deseducado é ficar com uma ou com as duas mãos sobre o peito.

POSIÇÃO DO CORPO

Não se perdoa a mania de pôr um ou dois cotovelos sobre a mesa. Isso passa despercebido nos velhos e nos doentes. Cortesãos há refinados que se permitem tais posturas. Não dês atenção a eles nem os imites.

Entrementes, sê atento para não incomodar com os cotovelos a quem está assentado ao teu lado. Também não, com os pés, a quem está a tua frente,

Não fiques a balançar sobre a cadeira, apoiando-te, ora sobre uma das nádegas, ora sobre a outra. Tal atitude sugere o trejeito de quem está para liberar gases do tubo digestivo ou, pelo menos, se esforça para tanto.

O correto é ficar de corpo direito, em equilíbrio estável.

O GUARDANAPO

Se te oferecem o guardanapo, coloca-o ao ombro esquerdo ou sobre o braço do mesmo lado.

O CHAPÉU

Sendo indeclinável estar à mesa em companhia de pessoas mais gradas, posto que tens os cabelos bem penteados, dispensa então o chapéu, a menos que o costume do lugar aconselhe diversamente ou haja exigência em contrário por parte da autoridade do anfitrião ao qual não seria airoso contrariar.

Regiões há onde o costume obriga que criança, junto de adultos,

tome a refeição na ponta da mesa, tendo a cabeça coberta.

Em todo caso, a criança não se aproxime da mesa a não ser que expressamente convidada. Também não pode permanecer junto da mesa até o final da refeição. Logo assim que se alimentou, suficientemente, tome do prato e retire-se, após ter saudado os convivas, fazendo uma leve genuflexão máxime àqueles de maior categoria.

TALHERES

O copo fica à direita como também a faca, devidamente asseada, para talhar a carne. O pão à esquerda.

O PÃO

Alguns cortesãos se distraem em apertar o pão com a palma da mão para depois parti-lo em pedaços com as pontas dos dedos. Tu, porém, deves cortá-lo, normalmente, com a faca, sem tirar a côdea ao derredor, mas indo de um lado a outro. Isso sim revela modo de gente refinada.

Os antigos, durante a refeição, tinham um rito religioso de manusear o pão como se fosse objeto sacro. Daí veio o costume de beijá-lo, se ocorre de cair sobre o piso.

BEBIDA

Principiar a refeição bebendo é hábito dos alcoólatras que bebem não por sede e, sim, por impulso. Isso, além de inconveniente, prejudica a saúde.

Não há necessidade alguma de tomar líquido logo depois de ter tomado sopa ou bebido leite.

Aliás, beber mais de duas ou três vezes, no decorrer da refeição não é elegante nem saudável para as crianças. Bebam uma única vez ao começar o segundo prato, principalmente se for um assado. Depois, no final da refeição, bebam, mas sorvendo o líquido com moderação, não engolindo de um sorvo nem fazendo aquele rumor típico de cavalo.

O vinho e a cerveja, que têm igual teor inebriante, prejudicam a saúde das crianças e depravam os costumes.

Preferível mesmo é que a juventude, por ser mais acalorada, beba apenas água.

De acordo .com a idade dos menores é mais adequado tomar água ferventada. Se tal não se adequar ao clima e a outras coisas mais, então bebam cerveja menos forte ou vinho mais suave diluído em água.

Pelo mais, eis alguns dos prêmios que contemplam pessoas dadas ao vinho: dentes amarelados, pálpebras caídas, olhos embaciados, estupor mental, velhice prematura.

Antes de beber, engole a comida. Nunca aproximar o copo dos lábios sem, primeiro, tê-lo limpado com a guardanapo ou com o lenço, principalmente se um dos convivas te apresenta o próprio copo ou se todos bebem da mesma taça.

REPARAR NOS OUTROS

Girar os olhos enquanto se bebe a fim de observar os outros, nada é mais indiscreto. Também é impróprio o costume de inclinar o pescoço para trás, à guisa de cegonhas, a fim de esvaziar o copo até a última gota.



BRINDE

Se alguém levanta um brinde a tua saúde, retribui com cortesia e, tocando os lábios com o copo, limita-te só a umedecê-los, fingindo beber. Isso é quanto basta para também atender ao festivo conviva. Se o indivíduo insiste como vilão, retruca, dizendo que, um dia, como adulto lhe darás troco adequado.

SOFREGUIDÃO EM COMER

Há gente que, mal se aproxima da mesa, mete a mão nas travessas. a saúde das crianças e depravam os costumes. Isso é coisa de lobo ou de quem devora as carnes da panela antes mesmo de serem feitas as libações aos deuses, como diz o provérbio.

Não tocar, de imediato, no prato servido, não só para não só para não ostentar gula, mas ainda por causa do perigo, por vezes, conexo. Se introduzido na boca, sem o devido cuidado, alimento muito quente resulta ser necessário ou cuspir fora ou queimar a goela. Ambas as reações são tão ridículas quanto mortificantes.

Aguarda um pouco. É vantajoso ir-se acostumando ao controle do apetite. Em virtude de tal conselho, e não por causa da idade, que Sócrates sempre declinava tomar da primeira taça.

PRECEDÊNCIA

Quando uma criança toma lugar à mesa em companhia de pessoas mais velhas, seja a última a servir-se da travessa, e mesmo assim, após ter sido convidada. É gesto grosseiro enfiar os dedos no molho. Pega com a colher ou o garfo o que te apetecer. Ao invés de pôr-te a escolher dentre todas as porções da travessa, à moda de guloso, retira aquela parte que está bem à tua frente.

A propósito, aprendamos de Homero, onde é frequente este verso: "eles estendiam as mãos para aqueles pedaços de carne cozida que estavam diante deles".

Se um pedaço for mais apetecível, deixa-o para outrem e serve-te de outra porção próxima.

Posto que remexer o conteúdo da travessa inteira passa por gulodice, o simples movimento para girar a travessa a fim de selecionar as melhores partes não deixa de ser descortês.

Se te oferecem uma porção de melhor aspecto, então agradece com cortesia e aceita. Em seguida, tendo separado uma parte pequena para ti, devolve o restante a quem te apresentou o prato ou então passa-o ao vizinho.

O que não pode ser segurado com os dedos, seja posto no prato.

Se te for oferecido um pedaço de bolo ou de torta, pega-o com o talher, coloca-o no prato e devolve o talher. Se for algo de mais mole, recebe para degustar e devolve a colher depois de limpa na toalha de mão.

Em todo caso, lamber os dedos untados ou enxugá-los na roupa é de todo inconveniente. O correto seria servir-te da toalha ou do guardanapo.

MODO DE DEGLUTIR

Deglutir bocados inteiros, apressadamente, é próprio das cegonhas e dos histriões.

Quando alguém está a separar uma fatia, não fica bem já aproximar a mão ou o prato antes que o garção ofereça. Então parece que queres pegar o que estava sendo destinado para outra pessoa. O que te for oferecido, segura-o com três dedos ou apresenta o prato para receber.

Se o que foi oferecido não agrada ao teu paladar, não vás dizer como Clitifones da comédia: "Pai, não aguento!" Pelo contrário, agradece com suave sorriso. Essa é a maneira elegante de refugar.

Dado que o ofertante insiste, replica, com cortesia, que o prato não te apraz ou que já te sentes suficientemente atendido.

MODO DE CORTAR A CARNE

Recomendável é que, desde logo, as crianças, sem aquela afetação de certos indivíduos, aprendam a técnica de cortar com a devida propriedade. Assim, paleta não se corta como perna de carneiro; nem pescoço como costela. Por sua vez, frango, faisão, perdiz e pato, todos eles são dissecados de maneira diversificada.

OUTRAS PRECAUÇÕES EM BANQUETES

Longe de ti passar para os outros um bocado já comido

É costume de caipira estar a imergir no caldo o pão mordido. Nada mais repugnante que repor, no prato, o alimento já mastigado, retirando-o da goela. Se ocorrer que algo, já na boca, não deve ser deglutido, então, voltando-se para trás, trata de retirá-lo de qualquer jeito, discretamente.

Tem-se como de mau gosto repor, no prato, alimento já provado ou ossos descarnados.

Não jogar para debaixo da mesa ossos e outros detritos a fim de não conspurcar o pavimento. Também não depositar sobre a toalha da mesa nem dentro da travessa de serviços. O certo é deixar, num canto, dentro do teu prato ou no pires que, segundo o costume corrente, destina-se a receber os restos.

Revela inépcia quem tira alimento da mesa para dá-lo aos cães dos outros. Pior ainda é estar a acariciá-los.

É ridículo retirar a casca do ovo, usando as unhas ou o polegar. Também detestável é servir-se da língua para descascá-lo. O correto é o uso da faca. Roer os ossos fica bem só para cães. Gente educada sabe como descamar os ossos com a faca.

Mancha de três dedos no saleiro, como se diz por escárnio, são as pegadas do caipira. A regra manda pegar o sal com a faca. Se o saleiro estiver distante, pede por favor e apresenta o prato.

Em todo caso, lamber os dedos untados ou enxugá-los na roupa é de todo inconveniente. O correto seria servir-te da toalha ou do guardanapo.

É coisa de felinos e não de humanos lamber, com a língua, prato ou tigelas onde ficou aderente o mel ou resíduo açucarado.

Primeiro, corta a carne em fatias dentro do prato; a seguir, junto com o pão, mastiga por algum tempo e depois podes engolir. Tal procedimento é preceituado não só pela boa educação como ainda pela saúde.

Indivíduos há que, ao comer, mais parecem devorar e assim se assemelham aos que estão para serem, incontinenti, encarcerados. Tal sofreguidão 'revela o ladrão.

Outros engolfam tanta coisa na boca que estufam as cavidades do rosto.

Alguns, ao mastigar, abrem de tal modo a boca que chegam a grunhir como suíno.

Não falta quem come com tal avidez que aspira como se estivesse sendo sufocado.

Beber e falar com a boca cheia, sobre ser mal-educado, é também perigoso.

Convém que as ceias prolongadas tenham intervalos para a conversação descontraída.

Muita gente há que bebe e come sem fazer pausa ou tomar fôlego, não por causa da fome ou da sede, mas porque não é capaz de ficar sossegada. São indivíduos impulsivos que, ora coçam a cabeça, ora limpam os dentes ou gesticulam, ora brincam com a faca, ora tossem ou escarram e cospem.

Tais cacoetes tanto demonstram o desajustamento dos rústicos como podem até ser indício de anomalias. Convém esconder o enfado, quando escutas a conversa dos outros sem ter chance de falar.

Não há utilidade alguma em sentar-se à mesa e ficar meditabundo.

São até vistos indivíduos tão concentrados que, além de nada ouvirem de quanto os outros falam, não percebem que estão a comer. Se forem chamados pelo nome, tomam o ar de despertados do sono. Isso porque estão de olhos pregados nos pratos.

Feio mesmo é ficar de olho vivo no vizinho para observar o que ele come. Também não é elegante assestar os olhos, fixamente, em determinada pessoa.

Igualmente pouco polido é olhar de soslaio para aqueles que estão ao lado. Pior de tudo é girar a cabeça para trás a fim de ver o que acontece em outra mesa.

Mexericos a respeito do que é dito e feito entre um copo e outro, não fica bem para ninguém e muito menos para um menino.

Criança, à mesa com pessoas mais velhas, deve ficar em silêncio, a não ser que tenha necessidade de dizer alguma coisa ou seja solicitada a falar.

Rir, moderadamente, de alguma palavra chistosa, nada de errado, porém, em ocasião alguma rir motivado por palavra obscena. Sequer levantes as sobrancelhas, se quem a proferiu é pessoa de classe. Ao invés, deves tomar o jeito de quem nada ouviu ou, ainda melhor, fazer que não entendeu.

Se o silêncio é ornamento para a mulher, muito mais para a criança.

Há quem responde bem antes que o interlocutor tenha findado a frase. Acontece então que, dando resposta, provoca risada e enseja recordar o velho provérbio: "Eu te pedia o ancinho " [1].

Aliás, certo rei de grande sabedoria tinha na conta de idiotice o hábito de responder antes de ter ouvido a pergunta. Com efeito, não se ouviu o que não foi entendido.

Se não entendeste bem a pergunta, fica, por um instante, em silêncio até que o interlocutor, espontaneamente, torne a interrogar. Se ele não o faz e mesmo assim insiste na resposta, então a criança, com uma amável escusa, pede que repita o que foi dito.

Dado que a pergunta foi entendida, ocorre pensar um pouco e depois responder com brevidade e de modo simpático. Durante o convívio não deixes escapar nada que prejudique o clima de alegria.

É desairosa a prática de falar mal de pessoas ausentes. Não é de louvor recordar para algum dos convivas qualquer de seus pesares.

Criticar o que está servido na mesa, além de deseducado, revela ainda ingratidão para com o anfitrião.

Quando os gastos com o banquete saírem de tua posse, é gentil pedir compreensão pela exiguidade de fartura, porém, elogiar e proclamar os gastos é o pior dos condimentos para os convivas.

Se, durante a ceia, alguém for grosseiro por ignorância, é de relevar o episódio, ao invés de zombar. Afinal, beber em companhia implica certa liberdade. Em todo caso é cruel estar a propalar, lá fora, como, aliás, já advertia Horácio, algo que escapou do controle, durante a festa. O que, aliás, foi falado e acontece deve passar com o vinho. Caso contrário, ter-se-ia que ouvir o ditado: ”Odeio o conviva de boa memória”.

Se o convívio se prorroga além do tolerável para a idade juvenil e vai se encaminhando para descomedimentos, então, apenas satisfeito o apetite, retira-te, discretamente, ou depois de pedir licença.

Aqueles que submetem crianças à dieta, no meu pensar, são indivíduos tão desmiolados quanto aqueles que os fazem comer em demasia. Realmente, se o regime debilita a resistência de organismos ainda tenros, o excesso de alimentos atordoa o vigor mental. Eis porque, desde cedo, a criança deve aprender a temperança.

O corpo de criança deve estar alimentado aquém da plena saturação. E preferível comer diversas vezes a empanturrar-se.

Há indivíduos que desconhecem os limites do empanzinamento a não ser quando estão a perigo de explodir ou de rejeitar, com o vômito, a sobrecarga.

É sinal de desamor pelas crianças permitir a tão tenra idade participar de ceias que se prorrogam pela noite adentro.

Se for necessário retirar-te da ceia, que se delonga por horas a fio, toma contigo o prato com as sobras e, depois de ter feito uma saudação ao convidado de maior destaque, em seguida, afasta-te com outros convivas, mas retorna bem logo, a fim de que não pensem que estivesses a fazer gracejos ou qualquer coisa de pior.

Ao voltar à mesa, serve-te, se ainda necessitas de algo ou então toma lugar e fica em respeitosa espera de qualquer ordem. Em todo caso, seja ao trazer para a mesa qualquer coisa, seja ao tirar, cuida para não sujar a veste.

FINAL DO BANQUETE

Se fores apagar as velas, primeiro, afasta-as da mesa, e, apenas extinta a chama, submerge-a em areia ou pisoteia-a sob a sandália para que o odor desagradável não seja causa de irritação para os outros.

Quando for para pegar ou entornar alguma coisa, cuida para não te servir da mão esquerda.

Se for pedido para fazer a oração final de agradecimento, toma a atitude adequada para demonstrar que estás pronto ao rito, enquanto aguardas o momento oportuno para executá-lo em meio ao silêncio dos convivas. Enquanto esperas, mantém o rosto voltado, respeitosamente, para quem preside a refeição.



Nota:

(1) Trata-se do antigo provérbio em latim "falces petebam" ("eu te pedia foice"), citado por Svida. Diálogo entre camponeses. Um pede a foice e outro responde: "Só tenho enxadão". Em suma, diálogo entre surdos. Alguém pede uma coisa e o outro responde atravessado. (NT)


(De civilitate morum pueorum / Sobre a civilidade dos costumes dos meninos - 1530; tradução de Luiz Feracine)



(Ilustração : James Ensor - The Banquet of the Sartarved – 1915)